sexta-feira, 3 de julho de 2009

Estação de Espuma\1


Livro: Arzila, Estação de Espuma, Lisboa: Hiena Editora, 1987
Autor: Tahar Ben Jelloun
Tradutor: Al Berto
Ilustrador: Luís Manuel Gaspar





Príncipio:



A luz pesou demoradamente sobre a minha memória
eu estava despedaçado em cima de grãos de areia
um corpo de tinta
preso à argila da manhã
preso à alga intacta
o dia
enluvado
rouba o riso
às pedras da cidade



Final:



eu sou a inércia criminosa e o exílio dos cães
tenho a amizade dos gatos e dos pobres
todas as minhas esposas me foram infiéis
soçobraram numa insensível loucura
das imagens e não das almas
eles dizem que estou doido
mas o que estou é sozinho
um pouco triste
escutai-me
vou contar-vos tudo...
eu tinha-lhe dado uma cabra...
não
não estou doido
se me deres um cigarro continuo a história...



Este livro foi-me oferecido, em surpresa, pelo meu amigo, um grande admirador e conhecedor da vida e obra de Al Berto, Carlos Serra. São estes os gestos dos anjos.

sábado, 13 de junho de 2009

Quando aqui não estás\1
Livro: Uma existência de Papel, 1984-85
Autor: Al Berto
Al Berto desapareceu em 13 de Junho de 1997, no mesmo dia e na mesma cidade em que outro poeta, a quem dedicou um texto n' O Anjo Mudo, nascera, no ano de 1888, Fernando Pessoa.



quando aqui não estás
o que nos rodeou põe-se a morrer

a janela que abre para o mar
continua fechada só nos sonhos
me ergo
abro-a
deixo a frescura e a força da manhã
escorrerem pelos dedos prisioneiros
da tristeza
acordo
para a cegante claridade das ondas

um rosto desenvolvendo-se nítido
além
rasando o sal da imensa ausência
uma voz
quero morrer
com uma overdose de beleza

e num sussurro o corpo apaziguado
perscruta o coração
esse
solitário caçador

in O Medo/2005, p. 529

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Com uma esferográfica cravada no coração\1

Data: Quinta-feira, Junho 26, 2003
Autora: Deda
Morada do silêncio: Notícias do cais


Um luto extemporâneo


"Mas ninguém possui verdadeiramente alguma coisa. As coisas do mundo pertencem a todos e, sobretudo, a quem aprendeu a nomeá-las", é o que me diz agora Al Berto, com as suas asas de "O Anjo Mudo". E então fiquei triste por só ter nomeado os textos de Al Berto - quando os tive entre os dedos - depois dele ter desaparecido. Descobri-o alguns anos depois, já residente em Portugal. Ouvi recitais com as suas palavras, li algumas coisas soltas. Um dia fui visitar um amigo ao hospital. Tinha feito uma cirurgia na perna. Estava triste. Havia lido "Horto de Incêndio" de uma vez só, sobre os leçóis brancos. Teria alta dentro de meia hora e entregou-me a obra com uma generosidade imprópria dos que sentem dor. E depois ainda houve o "Baía dos Tigres", designadamente a parte em que Pedro Rosa Mendes fala ao telefone com Francisco Sena Santos e recebe a notícia da morte de Al Berto. A leitura fez com que, pelo menos para mim, o poeta hoje morresse. Um luto extemporâneo.


Publicada por Deda em 2:19 AM

Edições Princeps\1

Livro: À Procura do Vento num Jardim d'Agosto , Alberto R. Pidwell Tavares, Editor, 1977
Autor: Al Berto


Princípio:

«viajar pela casa de paredes brancas. onde vive um prego enferrujado deambulo, agarrado ao corrimão de cobre subo as escadas. cego, quando teu nome se incedeia no vazio dos quartos sem mobiliário, sem corpos visíveis, sem fantasmas, todos de memória caiados.

lembras-te? ouvíamos o rumor dos pássaros nas palmeiras e pela janela quebrada, ao fundo do corredor, apercebíamos o mar. naquele recanto arrumávamos os sapatos, a roupa sobre a cadeira, longe da cama em desordem. as portas de madeira encerada, com nós retorcidos, claros olhos de felino cintilando na penumbra da tarde.

de quarto em quarto, perco-me para reencontrar o aroma de teu corpo ausente. no ar quente da casa a poeira forma suaves cortinas que me escondem dos espelhos. a luz esbranquiçada, quase comestível, alinhava rostos que viveram aqui, diluem-se junto aos umbrais assim que me aproximo deles.

vou tropeçando de degrau em degrau, de andar em andar, de subterrâneo em subterrâneo, abro e fecho portas, passam os anos. fecho os olhos, espio Tangerina deitada no chão, para morrer».

in O Medo/2005, p. 14

Final:

«/jardim de águas suspensas/ mágico asfalto canta noite adiante tua delinquência/ gemo ao possuir-me lentamente com este gume/ prateada nublosa de incenso/ larva de sangue/ miolo da escrita/ a cidade exala corpos queimados/ fogo por todos os lados/ fogo/ sou hoje o homem mais procurado do mundo/ THE MOST WANTED MAN/ nas cidades os corpos abrem-se ao lume/ ardem/ a noite arde/ os cabelos cresceram-lhe sobre os ossos e sua voz de medusa mal-amada ecoa na alba extreminadora/ sono ensaguentado/ goodbye silvercar goodbye goodbye/ ao volante da noite assustadora o homem mais sonâmbulo do mundo cobre-se de dor/ e de um incorruptível ouro incendiado/».

in O Medo/2005, p. 66

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Tributo a Al Berto/1

Livro: O ciclo menstrual da noite, Castelo Branco: Edium Editores, 2008
Autora: Alice Macedo Campos
Morada do silêncio: A tradução da memória



tributo a al berto



«o homem está sentado, descansa, desiste de viver. instalado na desordem da sala, o seu corpo é um móvel, um barco atracado. há uma voz que diz que os peixes dormem. é amparo. a mulher atravessa a memória com uma caixa na mão. a dor está ali perto. planta os remédios e verte o resto dos copos. limpa as fezes do gato que figiu da vizinha. um poema, diz ele, é um sítio melhor do que a marquise.
o homem sabe que tem um animal no pensamento. e não tira a mulher da cabeça. fecha os olhos e escreve um nome no interior das pálpebras. suponhamos, por exemplo, a palavra frio. essa palavra pode ser o fundo do mar. ou a profundeza da memória. suponhamos a mesma palavra vestida de branco. essa palavra pode ser o leite do gato. a mulher vestida de noiva. suponhamos a mesma palavra vestida de preto. essa palavra pode ser uma viúva. um disco de vinil rachado. suponhamos a mesma palavra despida. essa mulher pode ser a mulher nua. o gato com medo da água. suponhamos a mesma palavra vestida com um agasalho. essa palavra não existe. deixa de haver frio sobre a terra. amparo morre».
Página 32

O Anjo mudo

Livro: O Anjo Mudo, Lisboa: Contexto, 1993
Autor: Al Berto


Princípio:
«Um dia li num livro: "Viajar cura a melancolia".

Creio que, na altura, acreditei no que lia. Estava doente, tinha quinze anos. Não me lembro da doença que me levara à cama, recordo apenas a impressão que me causara, então, o que acabara de ler.
Os anos passaram - como se apagam as estrelas cadentes - e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto, persiste em mim aquela estranha impressão de que lera uma predestinação».
Página 9

Final:
«O mar evade-se de minha orelha, e teu olhar cabisbaixo, teu olhar plúmbeo dalgum céu de viagem, ainda rebenta sem piedade meus abcessos.
E derramo-me e torno-me lodaçal. Onde a noite vem azular os fogos-fátuos, língua de lume velando a minha passagem».
Página 111

O Anjo Mudo


Um amigo bibliófilo e filantrópico, de sua graça Henrique Fialho, sabendo que estudava este livro, ofereceu a primeira edição de O Anjo Mudo com a assinatura do próprio Al Berto. A estes gestos nunca se sabe como agradecer, senão tentar fazer o melhor que podemos para não desiludir nem livro, nem amigo. Com os livros nos comovemos por dentro das pessoas e edificamos as memórias dos nossos mais íntimos humanos. Desenhamos com o dedo a sua caligrafia.